Papa Francisco no encontro com os jovens e os idosos em Iqaluit, Canadá / Captura de vídeo (EWTN)
QUEBEC, 29 jul. 22 / 08:25 pm (ACI).- No último dia de sua visita ao Canadá, o papa Francisco teve um encontro com jovens e idosos na praça da escola primária de Nakasuk, em Iqaluit. O papa os incentivou a “percorrer, juntos, um itinerário de cura e reconciliação, que, com a ajuda do Criador, nos ajude a projetar luz sobre o que aconteceu e superar aquele passado obscuro”.
A seguir, o discurso completo do papa Francisco:
Queridos irmãos e irmãs, boa tarde!
Saúdo cordialmente a Senhora Governadora Geral e todos vós, feliz por vos encontrar. Agradeço as vossas palavras e também as canções, danças e músicas de que muito gostei!
Há pouco, escutei vários de vós, ex-alunos das escolas residenciais: obrigado pelo que tiveram a coragem de dizer, contando grandes sofrimentos. Isso despertou em mim a indignação e a vergonha que, há meses, me acompanham. Também hoje e aqui quero dizer-vos o grande pesar que sinto; e desejo pedir perdão pelo mal cometido por não poucos católicos que, naquelas escolas, contribuíram para as políticas de assimilação cultural e de alforria. Veio-me ao pensamento o testemunho dum idoso em que descrevia a beleza do clima que reinava nas famílias indígenas antes da chegada do sistema das escolas residenciais. Aquela estação em que avós, pais e filhos se encontravam juntos em harmonia, comparava-a à primavera, quando os passarinhos cantam felizes ao redor da mãe. Mas de repente – dizia ele – o canto parou: as famílias foram desagregadas, os pequeninos levados para longe do seu ambiente; sobre tudo, caiu o inverno.
Tais palavras, ao mesmo tempo que geram tristeza, provocam também escândalo; e mais ainda quando as confrontamos com a Palavra de Deus, que manda: «Honra o teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias sobre a terra que o Senhor, teu Deus, te dá» (Ex 20, 12). Esta possibilidade não foi dada a muitas das vossas famílias, falhou quando os filhos foram separados dos pais e sentiram o seu país como um país perigoso e alheio. Estas assimilações forçadas evocam outra página bíblica: a história do justo Nabot (cf. 1 Re 21, 1-16): este recusara-se a ceder a vinha herdada dos seus pais a quem, governando, estava disposto a usar todos os meios para lha arrebatar. E vêm à mente também aquelas palavras fortes de Jesus contra quem escandaliza os pequeninos e despreza nem que seja um só deles (cf. Mt 18, 6.10). Quanto mal faz o romper os laços entre pais e filhos, ferir os afetos mais queridos, prejudicar e escandalizar os pequeninos!
Queridos amigos, estamos aqui com a vontade de percorrer, juntos, um itinerário de cura e reconciliação, que, com a ajuda do Criador, nos ajude a projetar luz sobre o que aconteceu e superar aquele passado obscuro. A propósito de derrotar a escuridão, também agora, como tínheis feito no nosso encontro do final de março, acendestes o qulliq. Este, além de dar luz durante as longas noites de inverno, permitia, com o calor que difundia, resistir ao rigor do clima, tornando-se essencial para viver. Também hoje continua a ser um símbolo muito belo de vida, dum viver luminoso que não se rende à escuridão da noite. Assim sois vós, testemunho perene da vida que não se apaga, duma luz que brilha e que ninguém conseguiu sufocar.
Sinto-me transbordar de gratidão pela oportunidade de estar aqui no Nunavut, no interior do Inuit Nunangat. Depois do nosso encontro em Roma, tentei imaginar estas imensidades que habitais desde tempos imemoriais e que, para outros, seriam hostis. Soubestes amá-las, respeitá-las, guardá-las e valorizá-las, transmitindo de geração em geração valores fundamentais, como o respeito pelos idosos, um sentido genuíno de fraternidade e o cuidado pelo meio-ambiente. Há uma bela correspondência entre vós e a terra que habitais, porque também esta é forte e resiliente, e responde com tanta luz à escuridão que a envolve durante grande parte do ano. Mas mesmo esta terra, como toda a pessoa e população, é delicada, e precisa dos nossos cuidados. Cuidar, transmitir os cuidados: é a isto, em particular, que são chamados os jovens, apoiados pelo exemplo dos idosos! Cuidar da terra, cuidar das pessoas, cuidar da história.
Quero então dirigir-me a ti, jovem Inuit, futuro desta terra e presente da sua história. Desejo dizer-te, citando um grande poeta: «Aquilo que herdaste dos pais, reconquista-o se queres possuí-lo de verdade» (J. W. VON GOETHE, Faust, I, Nacht). Não basta viver da renda, é preciso reconquistar o que se recebeu em dom. Por isso não tenhas medo de ouvir uma vez e outra os conselhos dos mais idosos, abraçar a tua história para escreveres novas páginas, apaixonar-te, tomar posição perante os factos e as pessoas, envolver-te! E para te ajudar a fazer brilhar a lâmpada da tua existência, quero dar-te, também eu como irmão idoso, três conselhos.
O primeiro: caminha para o alto. Habitas nestas vastas regiões do Norte; que elas te recordem a tua vocação de tenderes para o alto, sem te deixares arrastar terra a terra por quem pretende fazer-te crer que é melhor pensares só em ti próprio e usares o tempo de que dispões apenas para as tuas diversões e interesses. Amigo, não estás feito para ires vivendo, para passar os dias equilibrando deveres e prazeres, mas para voares para o alto, rumo aos desejos mais verdadeiros e belos que abrigas no coração, rumo a Deus que deves amar e ao próximo que deves servir. Não penses que os grandes sonhos da vida sejam céus inatingíveis. Estás feito para voar, abraçar a coragem da verdade e promover a beleza da justiça, para «elevar a tua têmpera moral, ser compassivo, servir aos outros e construir relações» (cf. Inunnguiniq Iq Principles 3-4), para semear paz e solicitude onde te encontras; para acender o entusiasmo de quem vive ao teu lado; para ir mais longe, e não para nivelar por baixo tudo o que és e fazes.
Entretanto poder-me-ias dizer: Mas, viver assim, é mais árduo do que voar. Claro, não é fácil! Porque está sempre à espreita aquela «força de gravidade espiritual» que nos puxa para baixo, paralisa os desejos, esmorece a alegria. Então, pensa na andorinha do Ártico a que chamamos «charrán»: ela não deixa que os ventos contrários ou as bruscas mudanças de temperatura a impeçam de ir duma extremidade à outra da terra; às vezes escolhe rotas que não são diretas, aceita fazer desvios, adapta-se a certos ventos... mas sempre mantém clara a meta, sempre chega ao destino. Encontrarás pessoas que tentarão anular os teus sonhos, dir-te-ão para te contentares com pouco, lutares só pelo que te convém. Então perguntar-te-ás: Porque é que me devo esforçar por aquilo em que os outros não acreditam? E ainda: Como posso levantar voo no âmbito dum mundo que parece precipitar sempre mais em baixo por entre escândalos, guerras, enrodilhadas, falta de justiça, destruição do meio-ambiente, indiferença pelos mais frágeis, decepções vindas da parte de quem deveria dar o exemplo? Perante estas perguntas, qual é a resposta?
Quero dizer-te: tu és a resposta. Tu, irmão; tu, irmã. Não só porque, se te rendes, já perdeste à partida, mas também porque o futuro está nas tuas mãos. Estão nas tuas mãos a comunidade que te gerou, o ambiente onde vives, a esperança dos teus coetâneos, de quem – mesmo sem to pedir – espera de ti o bem original e irrepetível que podes inserir na história, porque «cada um de nós é único» (cf. Principle 5). O mundo em que vives é a riqueza que herdaste: ama-o, como te amou quem te deu a vida e as alegrias maiores, como te ama Deus, que criou para ti o que existe de belo e não cessa, nem sequer por um brevíssimo instante, de confiar em ti. Ele crê nos teus talentos. Cada vez que O procurares, compreenderás como o caminho, que te chama a percorrer, sempre tende para o alto. Senti-lo-ás quando, a rezar, fixares o céu e sobretudo quando ergueres o olhar para o Crucificado. Compreenderás que Jesus, da cruz, nunca aponta o dedo contra ti, mas abraça-te e encoraja-te, porque crê em ti, mesmo quando tu deixaste de crer em ti próprio. Então, nunca percas a esperança, luta, dá tudo por tudo, e não te arrependerás. Avança no caminho «passo a passo, rumo ao melhor» (cf. Principle 6). Orienta o navegador da tua existência para uma meta grande, para o alto!
O segundo conselho: vem à luz. Nos momentos de tristeza e desalento, pensa no qulliq: contém uma mensagem para ti. Qual? Que existes para vir à luz cada dia. Não só no dia do teu nascimento, quando não dependia de ti, mas cada dia. Diariamente és chamado a levar uma luz nova ao mundo: a dos teus olhos, do teu sorriso, do bem que tu, e só tu, podes oferecer. Mas, para vir à luz, tens de lutar todos os dias com a escuridão. Sim, há uma luta diária entre luz e trevas, que acontece, não lá fora num lugar qualquer, mas dentro de cada um de nós. O caminho da luz pede opções de coração corajosas contra a escuridão das falsidades, pede para «desenvolver bons costumes para se viver bem» (cf. Principle 1), não seguir rastos luminosos que desaparecem rapidamente, fogos de artifício que deixam apenas fumaça. São «ilusões, paródias da felicidade», como disse aqui no Canadá São João Paulo II: «Sem dúvida, não existem trevas mais densas do que aquelas que se insinuam na alma dos jovens, quando os falsos profetas extinguem neles a luz da fé, da esperança e da caridade» (Homilia na Missa de encerramento da XVII Jornada Mundial da Juventude, Toronto, 28 de julho de 2002). Irmão, irmã, Jesus está perto de ti e deseja iluminar o teu coração para te fazer vir à luz. Ele disse: «Eu sou a luz do mundo» (Jo 8, 12), mas disse também aos seus discípulos: «Vós sois a luz do mundo» (Mt 5, 14). Por isso também tu és a luz do mundo e chegarás a sê-lo cada vez mais, se lutares para afastar do coração a triste escuridão do mal.
Para aprender a fazê-lo, há que assimilar uma arte contínua, que exige «superar as dificuldades e as contradições através duma busca contínua de soluções» (cf. Principle 2). É a arte de separar cada dia a luz das trevas. Para criar um mundo bom – diz a Bíblia – Deus começou precisamente assim: separando a luz das trevas (cf. Gn 1, 4). Também nós, se nos quisermos tornar melhores, devemos aprender a distinguir a luz das trevas. E por onde se começa? Podes começar interrogando-te: O que é que se me apresenta reluzente e sedutor, mas depois deixa um grande vazio dentro de mim? Isto é treva! Ao contrário, o que é que me faz bem e deixa paz no coração, embora primeiro me peça para sair de certas comodidades e dominar certos instintos? Isto é luz! E vem-me uma nova pergunta: Qual é a força que nos permite separar dentro de nós a luz das trevas, que nos faz dizer «não» às tentações do mal e «sim» às ocasiões do bem? É a liberdade. Uma liberdade que não consiste em fazer tudo o que me apraz e vem à cabeça; não é aquilo que posso fazer não obstante os outros, mas pelos outros; não é total arbítrio, mas responsabilidade. A liberdade é o dom maior que o nosso Pai celestial nos deu juntamente com a vida. Perguntando-se qual é a maior satisfação que um filho possa dar a seu pai, um poeta escreveu estas estupendas palavras que vos leio:
«Perguntai a este pai se o momento melhor não é quando os seus filhos começam a amá-lo como homens, e a ele mesmo como um homem, livremente (…).
Ora Eu sou o pai deles, diz Deus, e conheço a condição do homem. (...)
Todas as sujeições do mundo Me repugnam e Eu daria tudo
por um belo olhar de homem livre (...).
A esta liberdade, a esta gratuidade sacrifiquei tudo, diz Deus (...).
Para criar esta liberdade, esta gratuidade,
Para fazer entrar em campo esta liberdade, esta gratuidade» (C. PÉGUY, «O mistério dos santos inocentes»: Ele está aqui, 1998, 373-375).
Eis a felicidade de Deus: não quando Lhe estamos submetidos, mas quando vivemos como filhos que escolhem amá-Lo, colocando em jogo a própria liberdade. Se queres fazer Deus feliz, este é o caminho: escolher o bem! Coragem, irmão! Coragem, irmã! Apropria-te da tua liberdade, não tenhas medo de realizar decisões fortes, vem à luz cada dia!
Por fim, o terceiro conselho: faz equipa. Os jovens fazem grandes coisas juntos; não, sozinhos. Porque vós, jovens, sois como as estrelas do céu, que aqui brilham maravilhosamente: a sua beleza nasce do conjunto, das constelações que compõem e que dão luz e orientação nas noites do mundo. Também vós, chamados às alturas do céu e a resplandecer na terra, sois feitos para brilhar juntos. É preciso possibilitar aos jovens que façam grupo, estejam em movimento: não podem passar os dias isolados, mantidos como reféns por um telemóvel! Os grandes glaciares destas terras fazem-me vir em mente o desporto nacional do Canadá: o hóquei no gelo. Como consegue o Canadá conquistar todas aquelas medalhas olímpicas? Como conseguem Sarah Nurse ou Marie-Philip Poulin marcar aqueles golos todos? O hóquei combina bem disciplina e criatividade, tática e força física; mas o que faz a diferença é sempre o espírito de equipa, pressuposto indispensável para enfrentar as circunstâncias imprevisíveis de jogo. Fazer equipa significa acreditar que, para se alcançar grandes objetivos, não se pode ir para diante sozinhos; é preciso mover-se em conjunto, ter a paciência de tecer densas redes de passagens. E significa também deixar espaço para os outros, sair rapidamente quando é a própria vez e apoiar os companheiros. Eis o espírito de equipa!
Amigos, caminhai para o alto, vinde à luz cada dia, fazei equipa! E fazei tudo isso na vossa cultura, na bela língua inuktitut. Faço votos de que, escutando os idosos e bebendo na riqueza das vossas tradições e da vossa liberdade, possais abraçar o Evangelho guardado e transmitido pelos vossos antepassados e encontrar o rosto Inuk de Jesus Cristo. De coração vos abençoo e digo: qujannamiik! [obrigado!].
Fonte: ACI digital
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